Nascido em Ruy Barbosa-Ba, Gibran Sousa é uma ilustre figura da cultura soteropolitana. Quem ja teve o prazer de conhecer alguma de suas obras sabe o quão interessante e empolgante ela é. E para quem ainda não a conhece eis aqui a oportunidade de adentrar o criativo universo de uma mente extremamente singular. Nesta matéria,Gibran Sousa se apresenta de forma despretenciosa e responde algumas questões sobre sua história, suas referências e como vê a poesia atualmente.
Gibran fala:
Culturalizados: Para quem não lhe conhece, como você se apresentaria?
Gibran Sousa: Assim, da maneira que eu sou. De qualquer uma dessas maneiras. Sobretudo, de todas. Ao longo do tempo fui sendo definido por representações curiosamente diferentes, chegando por vezes a me verem de formas diametralmente opostas. Isso já me causou enorme espanto, hoje me divirto. É certo que eu contribuí - e contribuo - bastante para isso, pois me percebo extremamente possível para com as pessoas as quais me estão. No entanto, noto decerto, que essa apresentação mútua é geralmente freada pelo outro, sabotando parcialmente o meu comprometimento relacional. Claro que entendo as diferenças individuais, e labuto com todas as suas asperezas prazerosamente. Mas não se trata aqui de não compreender o outro, ou seus limites, e sim da repressão que muitos têm para consigo, não permitindo estarem confortáveis, holísticos, possíveis. Seja por continência social, carência afetiva, postura religiosa, ou medo existencial, o fato é que as pessoas não se permitem, e se assustam quanto à profundidade e sinceridade que eu costumo causar nas personagens que construíram para si. Até porque essa coisa de sermos significantes latentes a espera de estímulos delineadores, implica aquela sensata relação epistemológica para a existência. Pela transitoriedade de sermos tantos. E apesar de nunca nos conhecermos, somos hábeis o bastante para nos reconhecermos.
Culturalizados: Como foi a sua infância?
Gibran Sousa: É impossível dizê-la - e dizer-me - sem antes explicar o chilique do meu amarcord: Minha memória é bizarramente anacronista, ou seja, ela é escandalosamente confusa. Não me lembro de nada com viva nitidez. Tenho imagens esquizofrênicas, caricatas, contaminadas, hipereditadas enfim, de infinito pedaço do meu passado. De modo a desacreditar de muitas das minhas lembranças, e duvidar intimamente da burra linearidade ocidental do tempo, à qual jamais quis pertencer, e por birra, não pertenço. É-me, no entanto, imprescindível dizer que isso desenha em mim uma possibilidade lúdica tamanha, a ponto de acender o onírico na certeza do paralelepípedo. Pois entendia ainda quando moleque, as corinthianas diferenças entre consciente e inconsciente, (vi)tais como outros maniqueísmos infantis inventados por tantos “quens” e queens, para precariamente justificar as complexas - e por isso mesmo translumbrantes - diversidades existenciais, seja por ausência de argumentos honestos, ou por (im)puro reducionismo folclórico.
Dito isso, sinto-me menos culpado de contar sobre minha infância: Ela foi estranha, sem grandes interregnos contemplativos. Eu brincava muito, estudava muito, viajava muito, e fazia o muito, muito. (Naturalmente com a displicência e curiosidade próprias de uma criança). Estudava num colégio de freiras, e trabalhava numa livraria engraçada. Lembro de viver ocupado, sendo produzido. E - assim como tantos da minha geração - sendo transformado socialmente numa indústria de expectativas alheias. Mas gozando irresponsavelmente de todas as descobertas que o medo, o não, e a dúvida podem incitar num pivete, sonso.
Eu já tinha uma forte inclinação para o ateísmo, embora ultra-secreta. Quando eu ainda nele acreditava, eu achava deus o maior incômodo do mundo, pois por causa daquele sujeito que eu só conhecia de nome, eu tinha que ir à missa, rezar, acordar cedo no domingo etc. Bem como tinha uma grande tendência ao desapego. Pois apesar de ter vários amigos, lembro de me desligar das pessoas repentinamente. E me parecia muito artificial o clima esfuziante de todos ao se verem no retornar das aulas. Talvez isso explique, em parte, a minha já conhecida desatenção nas relações familiares, amorosas e profissionais. Quando estava começando a ter namoricos, eram sempre as mulheres que iam à minha casa, enquanto todos os meus colegas rumavam às portas das casas delas. Um amigo me disse a alguns anos atrás, que desde garoto eu sempre me relacionei com várias mulheres. Eu não me lembro disso, mas em tom de deboche tentei me defender dizendo: “Eu sempre me relacionei com muitas mulheres, não porque eu nunca tenha me interessado suficientemente por uma mulher, mas sim porque eu sempre me interessei suficientemente por todas elas.”
Culturalizados: Quanto contato com a literatura, você teve nessa época?
Gibran Sousa: Um bom bocado. Havia muitos livros na minha casa, acumulados pela juventude do meu pai. Desde coleções completas de alguns autores nacionais, até livros de crenças orientais, passando por coloridos volumes de culinária. Grande parte desses ficava numa escura estante de madeira, ébano-betume, costumeiramente hidratada por óleos de linhaça e/ou peroba, deixando os livros com o aroma de sábado (dia de faxina), e, por isso, embora eu lesse todos os dias, habituei-me a dizer que os livros cheiravam a sábado.
Esse primeiro olho no olho com a literatura foi totalmente desorganizado, devido à caótica variedade de categorias ali presente. No entanto, sendo imensamente decisivo para a constituição da minha biblioteca particular, precocemente.
A poesia me chegou junto com a música popular. Morei numa casa onde, na minha infância, era muito festiva. Meu pai bebia com paixão, com entusiasmo, e acima de tudo, com vocação. Nos fins de semana os cômodos ficavam tomados por seus colegas de trabalho, amigos do bairro, ou mesmo recém-desconhecidos dos bares circunvizinhos. Nessas ocasiões, eventualmente alguém levava um instrumento para preencher todo aquele silêncio das conversas despretensiosas, quando meu pai prontamente dizia, com longas pausas, alguns versos soltos na introdução das músicas. Bem como cantava canções antiguíssimas, emocionando profundamente, sobretudo, a si mesmo.
Além dos livros de poesia - com todo aquele passageiro estranhamento (os livros de poesia me pareciam estar sempre em outro idioma, embora estivessem todos em português) - presentes em quantidade bem inferior aos romances, os quais eu lia com um desleixo quase profissional, havia Dulce. Ela cuidava da casa, de mim, de tudo, ouvindo rádio ininterruptamente. Escutava insistentemente rádios AM, onde aprendi enquanto garoto, todas aquelas perversidades realizadas pela mulher, induzindo os homens a praticamente gemer naquelas canções sentimentais, com arranjos sofríveis, repletas de carinhos no diminutivo. Eu achava bonito ficar ali, ouvindo, imóvel, comungando da desesperadora traição alheia. Não sabia, contudo, o quanto Dulce seria importante por ter me feito conhecer ainda tão menino, a música romântica, a música brega, a música do amor demais, enfim.
Culturalizados: Como e quando surgiu o interesse pela poesia?
Gibran Sousa: Surgiu com o interesse pela palavra, ela me deixa assim, invocado. Pois foi - e é - o meu mais sincero interesse. Lembro de ficar imitando silenciosamente cacoetes dos sotaques gritantes, riliando dos interioranos, de repetir profusamente as mais vulgares gírias bairristas - até atingirem alguma naturalidade na minha simulação existencial -, de pronunciar analiticamente expressões exóticas, de lamber o som de cada sílaba, saltando, soando, vibrando. Sentindo um prazer profundamente solar no universo da voz, nas suas idiossincrasias, dissonâncias, pausas, semelhanças, ritmos, identificando um a uns. E por gostar imensamente, falo tanto, e tão instintivamente, a ponto de passar extensos períodos discorrendo sobre qualquer assunto do meu efêmero desejo. Esse, composto, sobretudo por maiêuticas digressões, possibilitando a construção de diálogos superpostos, evitando eficazmente a cansativa sobriedade do raciocínio pragmático. Tal alumbramento pela cultura da oralidade é capaz de me atrair muitíssimo mais do que qualquer apelo visual, ou mesmo táctil. Seja num cântico, numa ladainha, num aforismo, ou nos rotineiros cumprimentos diários, os quais, mais me parecem um aperto de mão, um abraço, ou um beijo gentilmente empalavrado.
Culturalizados: Quais foram as suas referências?
Gibran Sousa: Quais não foram minhas referências? As referências nos atingem como o conceito de cultura. Cultura a qual qualquer um pode ousar em dizer o que é, mas ninguém é capaz de dizer convincentemente o que ela não é.
Culturalizados: Você já passou por alguma fase sem inspiração em sua vida? Se houve uma, a que você atribui?
Gibran Sousa: Não. Não saberia dizer de modo contundente, assim com todas as milaspas necessárias para me fazer entender tão espraiado quanto persuasivamente. Mesmo porque o termo inspiração me remete a algo externo, espiritual, fantasioso, algo para se rir num programa vespertino de tv. Algo jamais considerado por mim como verdadeiro, e que - para evitar fanáticos violentos como os que já fui vítima - me habituei a resumir como um grosseiro escapismo psicológico para justificar o que - ainda - não se pode explicar satisfatoriamente. Um charlatanismo social, um carnaval feito de carnaval, uma mentira coletiva bem estabelecida, para se fazer aquietar as múltiplas indagações metafísicas respondidas elegantemente com perguntas de sexo acachapante. O medo é o gatilho, assim como o principal determinante de qualquer religião vigente. E a inspiração é só isso: o contrário da expiração...
Culturalizados: O que lhe motiva a continuar criando?
Gibran Sousa: Minha motivação vai desde coisas desimportantes, até fatos muito marcantes. Algumas pessoas conhecem este caso, mas pra quem não conhece, narro aqui: Eu tenho um poema chamado “sex shop show”, que a primeira vista se trata de um poema sobre prostituição. É um poema intenso, duro. Pela sonoridade acentuada na sua exaustiva lentidão, como também na repetição abusiva da letra “s”. Com banda, ele se torna ainda mais incomodativo, contando com um arranjo visceral, num crescendo até a total inconsciência do perfil transfigurado das personagens. O público geralmente se perde, acompanhando apenas fragmentos, estilhaços, que vão caindo foneticamente naquela estrutura monótona e cadenciada. Pois bem, num evento cultural ao qual fui convidado, apresentei esse poema numa praça pública para algumas centenas de pessoas. E ao final do poema, uma senhora veio me falar com lágrimas escorrendo pelo rosto, dizendo que não via a filha há mais de um ano, que era garota de programa, e que naquele momento iria procurá-la. Ela me agradeceu, me abraçou, e saiu. Eu, paralisado, não consegui dizer uma única palavra àquela senhora.
Culturalizados: Como você vê a poesia dentro da cultura brasileira?
Gibran Sousa: A poesia de hoje tem medo da poesia. A poesia na cultura brasileira está domesticada. Pedindo licença e implorando audiência. É uma poesia cheia de modos, de bom senso, de interjeições cognitivas. Desde há muito, os poetas desaprenderam a arte de cutucar, de incomodar, de tirar o sujeito do sério. De fazer o cara se mover, de se impacientar, de fazê-lo querer mais. Muitos poetas de hoje só querem agradar, serem aplaudidos, reconhecidos, prestigiados. Isso é um câncer. Parece verso de barzinho com rima ambiente numa ironia bem comportada. A situação é preocupante. Essa poesia feita pra acomodar, pra fazer bem, pra dormir melhor, pra explicar, pra justificar, pra dignificar, é a mesma que coletiviza, que estereotipa, que infantiliza. Eu quero ver o mundo perdendo sentidos, insone, ardendo, inflamado, suando, querendo, tentando. Eu quero ver o mundo vivo. E não confortavelmente sentado esperando o momento de aplaudir algo que não corroborará significativamente para a sua vida. Essa alienação, infelizmente, não está presente apenas na poesia, mas na música, no cinema, assim como no teatro. A impressionante fotografia realizada contemporaneamente, talvez seja um dos únicos sintomas de honestidade artística nesse país. País que eu tanto amo, quando não me odeio, por tanto amar.
Culturalizados: Você encontra dificuldade para desenvolver e divulgar o seu trabalho em Salvador?
Gibran Sousa: Até Salvador encontra muita dificuldade para se desenvolver e se divulgar dentro de si.
Culturalizados: Sei que é hediondo perguntar a um artista qual o seu trabalho favorito, mas não vou desobrigá-lo de nos dar essa resposta:
Gibran Sousa: (risos) Se você conseguir encontrar pelo menos um pai, ou uma mãe, que diga sem nenhum mal-estar qual é o seu filho favorito, a minha resposta retórica não se justificará. Porém, como suponho antropologicamente que você não encontrará, a minha resposta se faz aqui: na paixão, que não se quantifica, não se contabiliza, não se categoriza, e justamente por isso, não pode se hierarquizar.
Culturalizados: Quais os seus planos para o futuro, como relação a poesia?
Gibran Sousa: O único plano honesto que se pode conceber para a poesia, é o da poesia sem planos. Eu nunca tive planos para com o futuro, mesmo sabendo que o futuro sempre teve tantos “quandos” para mim. Na minha disciplinada existência de ousadias, as coisas sempre foram se planejando na medida em que aconteciam, e por vezes até previamente aconteciam para só depois serem planejadas. Como este futuro que se projeta aqui: Neste já não branco onde preto escrevo: Tudo o que sei é que meus planos se resumem à existência do próximo beijo.
Gibran se mostra:
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Gibran fala:
“Ao longo do tempo fui sendo definido por representações curiosamente diferentes, chegando por vezes a me verem de formas diametralmente opostas. Isso já me causou enorme espanto, hoje me divirto”(Gibran Sousa)
Gibran Sousa: Assim, da maneira que eu sou. De qualquer uma dessas maneiras. Sobretudo, de todas. Ao longo do tempo fui sendo definido por representações curiosamente diferentes, chegando por vezes a me verem de formas diametralmente opostas. Isso já me causou enorme espanto, hoje me divirto. É certo que eu contribuí - e contribuo - bastante para isso, pois me percebo extremamente possível para com as pessoas as quais me estão. No entanto, noto decerto, que essa apresentação mútua é geralmente freada pelo outro, sabotando parcialmente o meu comprometimento relacional. Claro que entendo as diferenças individuais, e labuto com todas as suas asperezas prazerosamente. Mas não se trata aqui de não compreender o outro, ou seus limites, e sim da repressão que muitos têm para consigo, não permitindo estarem confortáveis, holísticos, possíveis. Seja por continência social, carência afetiva, postura religiosa, ou medo existencial, o fato é que as pessoas não se permitem, e se assustam quanto à profundidade e sinceridade que eu costumo causar nas personagens que construíram para si. Até porque essa coisa de sermos significantes latentes a espera de estímulos delineadores, implica aquela sensata relação epistemológica para a existência. Pela transitoriedade de sermos tantos. E apesar de nunca nos conhecermos, somos hábeis o bastante para nos reconhecermos.
Culturalizados: Como foi a sua infância?
Gibran Sousa: É impossível dizê-la - e dizer-me - sem antes explicar o chilique do meu amarcord: Minha memória é bizarramente anacronista, ou seja, ela é escandalosamente confusa. Não me lembro de nada com viva nitidez. Tenho imagens esquizofrênicas, caricatas, contaminadas, hipereditadas enfim, de infinito pedaço do meu passado. De modo a desacreditar de muitas das minhas lembranças, e duvidar intimamente da burra linearidade ocidental do tempo, à qual jamais quis pertencer, e por birra, não pertenço. É-me, no entanto, imprescindível dizer que isso desenha em mim uma possibilidade lúdica tamanha, a ponto de acender o onírico na certeza do paralelepípedo. Pois entendia ainda quando moleque, as corinthianas diferenças entre consciente e inconsciente, (vi)tais como outros maniqueísmos infantis inventados por tantos “quens” e queens, para precariamente justificar as complexas - e por isso mesmo translumbrantes - diversidades existenciais, seja por ausência de argumentos honestos, ou por (im)puro reducionismo folclórico.
Dito isso, sinto-me menos culpado de contar sobre minha infância: Ela foi estranha, sem grandes interregnos contemplativos. Eu brincava muito, estudava muito, viajava muito, e fazia o muito, muito. (Naturalmente com a displicência e curiosidade próprias de uma criança). Estudava num colégio de freiras, e trabalhava numa livraria engraçada. Lembro de viver ocupado, sendo produzido. E - assim como tantos da minha geração - sendo transformado socialmente numa indústria de expectativas alheias. Mas gozando irresponsavelmente de todas as descobertas que o medo, o não, e a dúvida podem incitar num pivete, sonso.
(Gibran Sousa)“Eu sempre me relacionei com muitas mulheres, não porque eu nunca tenha me interessado suficientemente por uma mulher, mas sim porque eu sempre me interessei suficientemente por todas elas.”
Eu já tinha uma forte inclinação para o ateísmo, embora ultra-secreta. Quando eu ainda nele acreditava, eu achava deus o maior incômodo do mundo, pois por causa daquele sujeito que eu só conhecia de nome, eu tinha que ir à missa, rezar, acordar cedo no domingo etc. Bem como tinha uma grande tendência ao desapego. Pois apesar de ter vários amigos, lembro de me desligar das pessoas repentinamente. E me parecia muito artificial o clima esfuziante de todos ao se verem no retornar das aulas. Talvez isso explique, em parte, a minha já conhecida desatenção nas relações familiares, amorosas e profissionais. Quando estava começando a ter namoricos, eram sempre as mulheres que iam à minha casa, enquanto todos os meus colegas rumavam às portas das casas delas. Um amigo me disse a alguns anos atrás, que desde garoto eu sempre me relacionei com várias mulheres. Eu não me lembro disso, mas em tom de deboche tentei me defender dizendo: “Eu sempre me relacionei com muitas mulheres, não porque eu nunca tenha me interessado suficientemente por uma mulher, mas sim porque eu sempre me interessei suficientemente por todas elas.”
Culturalizados: Quanto contato com a literatura, você teve nessa época?
Gibran Sousa: Um bom bocado. Havia muitos livros na minha casa, acumulados pela juventude do meu pai. Desde coleções completas de alguns autores nacionais, até livros de crenças orientais, passando por coloridos volumes de culinária. Grande parte desses ficava numa escura estante de madeira, ébano-betume, costumeiramente hidratada por óleos de linhaça e/ou peroba, deixando os livros com o aroma de sábado (dia de faxina), e, por isso, embora eu lesse todos os dias, habituei-me a dizer que os livros cheiravam a sábado.
Esse primeiro olho no olho com a literatura foi totalmente desorganizado, devido à caótica variedade de categorias ali presente. No entanto, sendo imensamente decisivo para a constituição da minha biblioteca particular, precocemente.
A poesia me chegou junto com a música popular. Morei numa casa onde, na minha infância, era muito festiva. Meu pai bebia com paixão, com entusiasmo, e acima de tudo, com vocação. Nos fins de semana os cômodos ficavam tomados por seus colegas de trabalho, amigos do bairro, ou mesmo recém-desconhecidos dos bares circunvizinhos. Nessas ocasiões, eventualmente alguém levava um instrumento para preencher todo aquele silêncio das conversas despretensiosas, quando meu pai prontamente dizia, com longas pausas, alguns versos soltos na introdução das músicas. Bem como cantava canções antiguíssimas, emocionando profundamente, sobretudo, a si mesmo.
Além dos livros de poesia - com todo aquele passageiro estranhamento (os livros de poesia me pareciam estar sempre em outro idioma, embora estivessem todos em português) - presentes em quantidade bem inferior aos romances, os quais eu lia com um desleixo quase profissional, havia Dulce. Ela cuidava da casa, de mim, de tudo, ouvindo rádio ininterruptamente. Escutava insistentemente rádios AM, onde aprendi enquanto garoto, todas aquelas perversidades realizadas pela mulher, induzindo os homens a praticamente gemer naquelas canções sentimentais, com arranjos sofríveis, repletas de carinhos no diminutivo. Eu achava bonito ficar ali, ouvindo, imóvel, comungando da desesperadora traição alheia. Não sabia, contudo, o quanto Dulce seria importante por ter me feito conhecer ainda tão menino, a música romântica, a música brega, a música do amor demais, enfim.
“A poesia de hoje tem medo da poesia. A poesia na cultura brasileira está domesticada”
(Gibran Sousa)
Culturalizados: Como e quando surgiu o interesse pela poesia?
Gibran Sousa: Surgiu com o interesse pela palavra, ela me deixa assim, invocado. Pois foi - e é - o meu mais sincero interesse. Lembro de ficar imitando silenciosamente cacoetes dos sotaques gritantes, riliando dos interioranos, de repetir profusamente as mais vulgares gírias bairristas - até atingirem alguma naturalidade na minha simulação existencial -, de pronunciar analiticamente expressões exóticas, de lamber o som de cada sílaba, saltando, soando, vibrando. Sentindo um prazer profundamente solar no universo da voz, nas suas idiossincrasias, dissonâncias, pausas, semelhanças, ritmos, identificando um a uns. E por gostar imensamente, falo tanto, e tão instintivamente, a ponto de passar extensos períodos discorrendo sobre qualquer assunto do meu efêmero desejo. Esse, composto, sobretudo por maiêuticas digressões, possibilitando a construção de diálogos superpostos, evitando eficazmente a cansativa sobriedade do raciocínio pragmático. Tal alumbramento pela cultura da oralidade é capaz de me atrair muitíssimo mais do que qualquer apelo visual, ou mesmo táctil. Seja num cântico, numa ladainha, num aforismo, ou nos rotineiros cumprimentos diários, os quais, mais me parecem um aperto de mão, um abraço, ou um beijo gentilmente empalavrado.
Culturalizados: Quais foram as suas referências?
Gibran Sousa: Quais não foram minhas referências? As referências nos atingem como o conceito de cultura. Cultura a qual qualquer um pode ousar em dizer o que é, mas ninguém é capaz de dizer convincentemente o que ela não é.
Gibran Sousa: Não. Não saberia dizer de modo contundente, assim com todas as milaspas necessárias para me fazer entender tão espraiado quanto persuasivamente. Mesmo porque o termo inspiração me remete a algo externo, espiritual, fantasioso, algo para se rir num programa vespertino de tv. Algo jamais considerado por mim como verdadeiro, e que - para evitar fanáticos violentos como os que já fui vítima - me habituei a resumir como um grosseiro escapismo psicológico para justificar o que - ainda - não se pode explicar satisfatoriamente. Um charlatanismo social, um carnaval feito de carnaval, uma mentira coletiva bem estabelecida, para se fazer aquietar as múltiplas indagações metafísicas respondidas elegantemente com perguntas de sexo acachapante. O medo é o gatilho, assim como o principal determinante de qualquer religião vigente. E a inspiração é só isso: o contrário da expiração...
Culturalizados: O que lhe motiva a continuar criando?
Gibran Sousa: Minha motivação vai desde coisas desimportantes, até fatos muito marcantes. Algumas pessoas conhecem este caso, mas pra quem não conhece, narro aqui: Eu tenho um poema chamado “sex shop show”, que a primeira vista se trata de um poema sobre prostituição. É um poema intenso, duro. Pela sonoridade acentuada na sua exaustiva lentidão, como também na repetição abusiva da letra “s”. Com banda, ele se torna ainda mais incomodativo, contando com um arranjo visceral, num crescendo até a total inconsciência do perfil transfigurado das personagens. O público geralmente se perde, acompanhando apenas fragmentos, estilhaços, que vão caindo foneticamente naquela estrutura monótona e cadenciada. Pois bem, num evento cultural ao qual fui convidado, apresentei esse poema numa praça pública para algumas centenas de pessoas. E ao final do poema, uma senhora veio me falar com lágrimas escorrendo pelo rosto, dizendo que não via a filha há mais de um ano, que era garota de programa, e que naquele momento iria procurá-la. Ela me agradeceu, me abraçou, e saiu. Eu, paralisado, não consegui dizer uma única palavra àquela senhora.
Gibran Sousa: A poesia de hoje tem medo da poesia. A poesia na cultura brasileira está domesticada. Pedindo licença e implorando audiência. É uma poesia cheia de modos, de bom senso, de interjeições cognitivas. Desde há muito, os poetas desaprenderam a arte de cutucar, de incomodar, de tirar o sujeito do sério. De fazer o cara se mover, de se impacientar, de fazê-lo querer mais. Muitos poetas de hoje só querem agradar, serem aplaudidos, reconhecidos, prestigiados. Isso é um câncer. Parece verso de barzinho com rima ambiente numa ironia bem comportada. A situação é preocupante. Essa poesia feita pra acomodar, pra fazer bem, pra dormir melhor, pra explicar, pra justificar, pra dignificar, é a mesma que coletiviza, que estereotipa, que infantiliza. Eu quero ver o mundo perdendo sentidos, insone, ardendo, inflamado, suando, querendo, tentando. Eu quero ver o mundo vivo. E não confortavelmente sentado esperando o momento de aplaudir algo que não corroborará significativamente para a sua vida. Essa alienação, infelizmente, não está presente apenas na poesia, mas na música, no cinema, assim como no teatro. A impressionante fotografia realizada contemporaneamente, talvez seja um dos únicos sintomas de honestidade artística nesse país. País que eu tanto amo, quando não me odeio, por tanto amar.
Culturalizados: Você encontra dificuldade para desenvolver e divulgar o seu trabalho em Salvador?
Gibran Sousa: Até Salvador encontra muita dificuldade para se desenvolver e se divulgar dentro de si.
Culturalizados: Sei que é hediondo perguntar a um artista qual o seu trabalho favorito, mas não vou desobrigá-lo de nos dar essa resposta:
Gibran Sousa: (risos) Se você conseguir encontrar pelo menos um pai, ou uma mãe, que diga sem nenhum mal-estar qual é o seu filho favorito, a minha resposta retórica não se justificará. Porém, como suponho antropologicamente que você não encontrará, a minha resposta se faz aqui: na paixão, que não se quantifica, não se contabiliza, não se categoriza, e justamente por isso, não pode se hierarquizar.
Culturalizados: Quais os seus planos para o futuro, como relação a poesia?
Gibran Sousa: O único plano honesto que se pode conceber para a poesia, é o da poesia sem planos. Eu nunca tive planos para com o futuro, mesmo sabendo que o futuro sempre teve tantos “quandos” para mim. Na minha disciplinada existência de ousadias, as coisas sempre foram se planejando na medida em que aconteciam, e por vezes até previamente aconteciam para só depois serem planejadas. Como este futuro que se projeta aqui: Neste já não branco onde preto escrevo: Tudo o que sei é que meus planos se resumem à existência do próximo beijo.
Gibran se mostra:
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Contato >> Blog http://gibransou.blogspot.com/
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